Palavra do Vigário Geral
A pós-pandemia e a necessidade de um novo ambiente eclesial
A pandemia do novo coronavírus (Covid-19), instalada em nosso meio, se apresenta como um desafio a todas as instâncias da sociedade, assim como para a Igreja, chamada a continuar a obra de Cristo na história. Esta é uma realidade constada e podemos dizer que a pandemia está nos fazendo avaliar, pensar e repensar muitas realidades em nossa vida e, dentre elas, a nossa missão enquanto Igreja de Jesus Cristo viva, atuante e presente nesta geografia missionária da Diocese de Cametá.
Já se foram três meses desde que a pandemia nos colocou todos em casa, onde vivemos a dimensão doméstica da nossa fé. E como tem sido maravilhosa essa experiência, apesar das tribulações do tempo presente, que segundo a palavra de Jesus não se pode comparar com a glória que nos espera. O isolamento social, para nós cristãos, se tornou um momento de recolhimento. Há quem diga que tem sido um grande retiro, caracterizado como um pequeno terremoto que nos instiga a olhar o mais profundo de nós mesmos. A Palavra do papa Francisco naquele 27 de março de 2020, em plena Praça São Pedro vazia, nos calou forte: “e pensar que permaneceríamos sadios numa sociedade enferma”, já fazia tempo que nos exortava a não ter medo, diante das tempestades da história.
Daqui a pouco é o momento de retornar a nossa vida pastoral, certamente usando de prudência. É verdade que estamos ansiosos para que isso aconteça, porém, como Igreja de Jesus Cristo, que veio para que todos tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10,10) o faremos com responsabilidade, sem atropelos, respeitando as orientações das autoridades sanitárias e colocando a vida sempre em primeiro lugar.
Diante do contexto atual será necessário um novo olhar, um ambiente eclesial diferenciado. Nossas ações pastorais precisam dar respostas claras e apresentar um plano bem definido para podermos realizar a missão, naquilo que estão a chamar de “novo normal”. Esse plano é urgente e terá como responsáveis todos os agentes e forças vivas da ação evangelizadora em nossa Igreja diocesana. Ninguém poderá ficar de fora. Cada um atuando em sua comunidade cristã, pastoral, serviço, grupo e movimento deve assumir novo elã missionário, com audácia e paresia.
Em âmbito de nossa Igreja local, Diocese de Cametá, estamos nos preparando para a realização da IV Assembleia do Povo de Deus, prevista para novembro próximo, donde nascerá o Plano Diocesano de Pastoral. Este evento eclesial de nossa Igreja particular não pode deixar de ler os sinais que este tempo nos legará. Ser aberto a estes sinais se faz providencial no sentido de forjar ações pastorais que respondam às grandes questões postas em pauta em tempo pandêmico. A história de nossa Igreja diocesana registra que um belo e longo caminho foi percorrido com ricos frutos produzidos, um novo e árduo, porém esperançoso caminho, ainda precisamos percorrer, com os olhos fixos em Jesus, que faz novas todas as coisas (Ap 21,5).
A Evangelli Gaudium número 15 nos ensina: “Devemos estar abertos para nos adaptar com agilidade, e passar de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária”. Uma coisa fica clara a nós todos, pastores e rebanho, as indicações do documento de Aparecida, treze anos depois, se torna atual, pois será urgente uma conversão pessoal, pastoral e ecológica sem precedentes. Conversão essa, recentemente desdobrada com clareza pelo documento final do sínodo pan-amazônico, que aponta a realização dos sonhos do papa Francisco tão bem elaborados na Exortação Apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia”.
É hora de evangelizar, há um novo tempo que se nos apresenta, o Senhor quer precisar de nós para restaurar vidas, reconstruir laços, ser presença de Deus em todas as estruturas humanas de nossa geografia diocesana. Esse novo tempo pede-nos igualmente a Igreja em saída do papa Francisco, assumindo o vocabulário missionário de Dom José Altevir, nosso pastor, e com o ardor missionário de cada cristão batizado de nossa Igreja local.
O contexto da pandemia nos obrigou a fechar nossos templos e, consequentemente, levou-nos ao doloroso afastamento do povo de Deus a nós confiado, em razão do isolamento social. A verdade é que a terrível doença está provando não só a Igreja, mas todas as estruturas humanas e sociais, em diferentes níveis. Nunca passava pela nossa cabeça Igrejas vazias e fechadas, nenhuma reunião de pastoral, encontros e outras atividades importantes cancelados.
Literalmente, os sacerdotes, cuja vocação e missão é ser dom de sim ao bem do outro, no sentido de estar em contato direto com as pessoas, atualmente, vagamos pelos templos sem saber o que se passa, e em muitos casos sem saber que decisão tomar. Reinventando a missão, descobrimos que não podendo estar sem contato corpo a corpo, olho a olho com o povo, nos tornamos pastores com o rebanho em seus lares.
É inegável que o pós-pandemia exigirá de nós, mais do que nunca, o estar próximo ao rebanho: a dimensão eclesiológica da proximidade, do se fazer um com o povo. Será necessário recomeçar a partir de Jesus Cristo, valorizando a dimensão doméstica de uma vida de fé que tem início no lar, na casa, no santuário familiar. É bom não nos acostumarmos com relações virtuais, que em tempo de isolamento social se faz necessário sim, mas que para a Igreja se entende como um serviço àqueles que, por algum motivo maior, não podem frequentar as atividades litúrgicas e pastorais da comunidade cristã. O virtual nos forçou a iniciativas rápidas, imediatas, urgentes e inéditas. Foram implementadas enormes adaptações e uma versatilidade em relação às competências diversas e ao aprendizado contínuo. A convivência diária, os encontros “olho no olho”, é então substituída pelo contato virtual por meio de aplicativos de conversas instantâneas e redes sociais. O contato virtual pode ser um grande facilitador na comunicação à distância, mas nada substitui o contato físico.
Será importante sempre de novo um retorno ao Evangelho: “Jesus percorria todas as cidades e povoados ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino, enquanto curava toda sorte de doenças e enfermidades” (Mt 9,35). A proximidade de Jesus com as pessoas lhe dava condições de ver em profundidade a situação de miséria das multidões. Sua visão das realidades não era superficial, mas muito real e profunda. A pandemia deixará uma sensação de terra arrasada, encontraremos um rebanho cansado, abatido e em muitos casos como ovelhas sem pastor, com misérias e privações de vida. Qual será nossa postura? Tocado pelo que viu, Jesus ficou possuído por um sentimento transformador, a compaixão: “compadeceu-se delas porque estavam cansadas e abatidas”(Mt 9,36).
Diante da situação de calamidade, vendo o povo ser violentado e completamente abandonado e vilipendiado em seus direitos, com a precariedade do sistema de saúde, à mercê de governantes preocupados tão somente com o econômico em detrimento de políticas públicas e sério enfrentamento da pandemia, conclamamos a todos que não percam a esperança. Há esperança! Somos a Igreja da esperança que não decepciona. Não perder de vista esta dimensão será fundamental para construirmos juntos e, em comunhão de fé, o “novo normal”. Reforçar a confiança no Senhor, que pede a nossa colaboração, será urgente. A comunidade cristã é chamada, assim como fez Jesus, a olhar para as multidões, perceber suas necessidades e intervir para transformá-la. Isso só será possível se a Igreja se colocar cada vez mais em estado de saída, pois somente saindo de si é possível ver a necessidade do outro. São João Crisóstomo deixou-nos um ensinamento que pode ajudar-nos a examinar se nos desculpamos facilmente, diante do nobre dever missionário que o Senhor nos chama: “Não há nada mais frio do que um cristão despreocupado da salvação alheia”.
Concluo com esta exortação do papa Francisco: “Olhando para o futuro, vamos ler os sinais que a COVID-19 exibiu claramente. Não esqueçamos o quanto a perda do contato humano durante este tempo nos tenha empobrecido profundamente, quando fomos separados dos vizinhos, dos amigos, colegas de trabalho e especialmente da família, incluindo a crueldade total de não podermos acompanhar os moribundos nos seus últimos momentos de vida e depois chorá-los devidamente. Não consideremos óbvio o fato de podermos retomar a convivência no futuro, mas redescubramo-la e encontremos formas de fortalecer agora esta possibilidade”.
Deus queira que toda a Igreja se deixe interpelar por esta pandemia, não querida por Deus, mas por Ele permitida, a fim de que possamos construir um ambiente eclesial favorável, neste tempo tão incerto, porém rico em possibilidades. Continuemos firmes. A missão avança, pois ainda temos um longo e frutuoso caminho a percorrer (1Rs 19,7).
Mons. Raimundo Nonato Rodrigues Martins
Vigário Geral da Diocese de Cametá
Mons. Raimundo Nonato Rodrigues Martins é sacerdote do clero da Diocese de Cametá, atualmente é vigário geral e pároco da paróquia Cristo Rei, em Pacajá-PA, licenciado em Filosofia pelo Instituto de Ensino Superior do Amapá e bacharel em Teologia pela Faculdade Católica de Fortaleza-Ceará e especialista em Formação de Presbíteros Diocesanos pelo Instituto Santo Tomás de Aquino de Belo Horizonte -MG.